10 dezembro, 2010

Faz-me falta a maresia.

Nos dias de chuva, se não posso ver o mar, 
gosto de o imaginar dentro do meu quarto. 
Faz-me falta a maresia.
Então oiço Arvo Part.

Alice a caminhar sozinha.

Partir.

Era ainda noite fechada
Levantei-me e parti. 
Fui em direcção ao mar. 
Segui a rebentação das ondas, apanhei conchas, 
contornei falésias; 
afastei-me de casa o mais que pude. 
Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha; 
vi crepúsculos e noites sobre um rio,
amei a existência.
Al Berto

Alice a caminhar sozinha

Nos acasos.

Nos acasos crescemos.
Nos acasos morremos e tranformamo-nos em pó.
E no pó da existência voamos nos céus vadios e luminosos.
Nos acasos a existência percorre um caminho sorridente,
entre o principio e o final de tudo.

Alice e os Acasos



02 dezembro, 2010

Avib.


O meu nome é Avib. Tenho 10 anos e vivo à nove neste aquário. Agora tenho esta cor encarnada, mas nem sempre foi assim. Vim de muito longe, daqueles lugares em que as águas são mornas e a areia tão fina que quase parece voar. Nessa altura era negro e parecia feito de rocha preta. Aprendi posteriormente que o meu corpo poderia mudar de cor sempre que eu quisesse, para me defender das ameaças dos rios.
Agora estou em casa de um homem que passa os dias a mudar as cores do mundo. Assim e como devem imaginar, não necessito de fazer qualquer esforço para viver.
Um dia acordei e lá estava ele, o pintor, a olhar para mim com os olhos muito abertos. Confesso que me senti bastante assustado, a ponto de sentir a vida ameaçada. Ainda a tremer, decidi que se fosse negro, talvez ele se sentisse também intimidado. Mas acho que esta não foi uma decisão sábia, pois, imediatamente a seguir a ter reparado na minha mudança de cor, começou a falar em voz alta e a gesticular, como se estivesse muito furioso. Talvez a cor negra tivesse sido muito agressiva para ele e quem sabe, tivesse ficado muito irritado comigo. A passagem dos anos deu-me esta capacidade de reflectir sobre as experiências e por isso resolvi que a melhor solução seria tentar uma conciliação.
Já mais calmo, o pintor olhou para mim. Eu era agora um peixe amarelo.

Alice
Alice e as estórias do mundo

Al Berto, O Medo

       em tempos li muitos livros, hoje raramente leio. os livros cansaram-me, devoraram-me a pouco e pouco o prazer de ler. 
         o vento da noite traz imagens: um rapaz de calcário deitado no dorso de um cavalo azul perfura a claridade do mar. abro a janela do sonho, aceno-lhe, mas ele não me pode ver.
         uma ave de palavras escreve no espaço a remota sabedoria do voo, depois desce e vem pousar suavemente na palma da mão. olho-a mas não ouso tocar-lhe.
acordo quando a ave e o rapaz se deitam sobre a pele. abro os olhos e estendo a mão e o corpo para fora do sono, ergo-me por dentro do imenso vazio.
         tudo se despedaçou. o sonho, e o amor que é sempre tão breve. o mundo dorme sob o vento. só eu continuo acordado, em vigília. se houvesse agora uma catástrofe eu daria por ela. levantar-me-ia daqui para encarar a morte, dizer-lhe que são inutilidades o que arrasta consigo.
         estou gasto. dei-me sempre mais do que podia. não há nada que me possam roubar, sou um homem espoliado de todos os bens, de todas as doenças, de todas as emoções.  sou um corpo pronto para a viagem sem regresso, para o crime e para a morte. sou um corpo que se evita, um homem cujo nome se perdeu e cuja biografia possível está no pouco que escreveu.  sou um corpo sem nacionalidade, pertenço às profundidades dos oceanos, ao voo da ave migrante. sou um alfabeto e não sei se terei tempo para me decifrar.
         lá fora anoiteceu.
         são raras as claridades que do sangue sobem ao rosto. há um lume invisível no teu olhar, uma visão que o espelho me revela: cintilam cristais enquanto dormes, uma árvore cresce nos pulmões.  assim construo as paisagens, assim te ofereço a morada de sossego e de prazer. mas tu não vens, porque me és exterior. posso criar o universo inteiro a partir das minhas células, só não posso criar-te a ti, corpo que morre na falsa juventude dos espelhos...
         ... a paixão revelou-se-me no instante em que percebi que sabia quase tudo da vida, mas já não foi possivel perder-me na tentação do suícidio. nunca amei e nunca fui amado: ignoro se isto é verdade, o mai provável é ter inventado, um dia, esta mentira, unicamente para me salvar.
         que horas serão para lá deste século?
         onde estaremos neste momento?
         estarei eu em ti ou serás tu que me devoras e me comoves?
         ... teu nome, pronuncia teu nome para que seja impossível esquecer-me do meu. diz-me o teu nome de ontem, quando éramos o reflexo exacto um do outro.  toca-me o rosto com o teu nome, ou pousa-o sobre as mãos; debruça-te para dentro de mim e deixa que o segredo do tempo fulmine os ossos.

in «O Medo 3», 1985


Alice  e as viagens