23 novembro, 2011

Os pesadelos

Gonçalo M. Tavares - gosto cada vez mais deste autor português. No sábado, num encontro literário, ao ouvi-lo falar , essa espécie de afecto, aumentou. As palavras que foram ditas revelaram-me aquele entendimento de um sentido que só se percebe se também o percebemos como nosso. A certa altura ele referiu que escrevia rápido, muito rápido, sem se importar com os aspectos formais ou com a semântica do que surgia no ecrã. Esse sentimento visceral da escrita vivo-o muitas vezes; não sei de onde vem: aparece subitamente, irrompe do corpo, da terra e as imagens voam atordoadas pelas palavras. É tão bom: essa perda da consciência momentânea, o aceleramento cardíaco, o fluxo de vida, da noite e do dia. O meu pesadelo é acordar e não conseguir escrever, como se de uma amnésia permanente se tratasse. Quanto a isto, aprendi um pequeno truque: não me esqueço de, ao acordar, sacudir a almofada à janela,
para que o pó do sono mau não permaneça. Fiquem bem!


Os pesadelos
O vinho aproxima o que está longe nos dias,
e afasta o que está próximo no espaço. Memória, sim, 
mas distorção também.
Tens demasiados acontecimentos maus no teu corpo,
e não esqueces.
Deves fechá-los como se fecha uma porta: com chave de três voltas.
Mas não adormeças: os pesadelos apanham facilmente
quem dorme com a cabeça pousada numa mesa dura de Café.
Materiais como a madeira, precisamente, entupidos de atrito,
não permitem que os discursos do sono saiam da cabeça
para o exterior. Daí os pesadelos serem mais frequentes
na cabeça sobre material duro
que na cabeça deitada sobre a almofada gentil. Mas mesmo
que os teus ossos mais altos
se encaixem em superficie meiga,
não te esqueças de, ao acordar,
sacudir a almofada à janela,
para que o pó do sono mau não permaneça,
em redor de si próprio,
como uma poça de água,
a criar bicho.

(de Gonçalo M Tavares)




Alice e os acasos.