06 fevereiro, 2012

Gostava de vos dizer uma coisa para terminar.

Às vezes este sentimento de inutilidade (como tão bem o Gonçalo expressa no seu poema) entranha-se profundamente e torna-se uma espécie de vírus dos nossos pensamentos mais íntimos. Todos nós, em determinado momento pensamos um pouco assim nestes modos "não adianta nada" . Queremos acreditar que um novo dia traz uma manhã limpa e a esperança renasce. É assim que tentamos controlar a dor da existência. Das palavras nasce a poesia e dela a vida sonhada. Uma boa semana.


Gostava de vos dizer uma coisa para terminar.
Às vezes tenho medo, muito medo.
Às vezes sofro.
Às vezes, penso nas pessoas que amo e penso na 
possibilidade de as perder.
Às vezes vejo alguém doente e fico incomodado.
Pode não ser um amigo ou um familiar.
Posso estar a vê-lo pela primeira vez.
Mas fico incomodado.
Aquela doença pertence-me.
Todas as doenças pertencem a toda a gente.
Todos os sofrimentos pertencem a toda a gente.
Todas as mortes pertencem um pouco a toda a gente.
Às vezes sinto isso muito,
outras vezes sinto menos.
Quando sinto menos posso preocupar-me com o mundo,
brincar com a poesia,
com a filosofia e com as palavras.
Mas quando sinto, deixo de conseguir pensar.
Quando sofro ou sinto o que alguém sofre, deixo mesmo
de querer ser inteligente.
Deixo de querer parecer inteligente.
Se estivermos cheios a sentir, não temos espaço para pensar.
Não fazem sentido as lógicas,
as filosofias,
as discussões.
Todo o nosso corpo sente.
E o que resta? Nada.
Só existe aquela morte, aquela doença, aquela velhice.
Só aquele pai que amo e está a envelhecer. Só aquela mãe 
que amo e está a envelhecer.
Só aquele amigo que morreu num estúpido acidente.
Só aquele amigo que se tornou amargo porque a mulher o
deixou.
Só o amor e a falta de amor.
As mulheres que nos enganam e as mulheres que são 
enganadas,
as mulheres e os homens que enganam.
Os amigos que deixam de o ser,
alguns inimigos que morrem, e temos pena.
Que importa o resto?
Onde está o livro importante?
O filme que resolve?
Podemos chorar à frente de um quadro, mas não resolve
nada.
Podemos pintar um quadro, escrever um poema, mostrar
às mulheres bonitas como somos bonitos, exibir o nosso
corpo, mas que adianta?
Estamos sozinhos.
Se não estamos, vamos estar.
Os amigos vão-nos deixando, vão-nos deixar.
Vão morrer ou nós vamos morrer.
Ou então deixam de nos telefonar, ou então deixamos de
lhes querer telefonar.
Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer.
Os livros não resolvem nada. A poesia é bonita e por vezes
descansa, acalma, mas não resolve nada, não resolve nada.
Somos artistas ou não somos, e qualquer coisa que seja não
adianta nada e nada impede.
Escrevemos poemas, mas não ajudam ninguém.
Escrevemos peças de teatro, sorrimos, tentamos pensar,
tentamos ter ideias, tentamos distrair as pessoas,
tentamos fazer pensar as pessoas, tentamos fazer chorar as pessoas,
e isso é bom, e até pode ser bonito, mas não adianta nada,
não resolve nada,
não adianta nada.


Gonçalo M. Tavares.
in O homem ou é tonto ou é mulher.
Alice em viagem interna.